Existência, Ameaça e Resistência - O Gato Maracajá
Apresentação da obra de Vivian Matias dos Santos, que participa da exposição coletiva Entre Sertão e Versos, da Galeria 180Arts em Recife.
Abordando a figura do gato maracajá na forma de um tríptico, a obra EXISTÊNCIA, AMEAÇA E RESISTÊNCIA é realizada sobre papel de algodão e mobiliza uma técnica mista que une camadas de formas e cores provenientes de geotintas, aquarela de origem vegetal, nanquim e lápis de cor à base de óleo. As motivações e conceitos históricos, pessoais e políticos presentes na concepção das imagens, sua narrativa e seu movimento, que transita entre a linguagem realista, o efeito evanescente e composição reluzente fantástica, são apresentados a seguir no depoimento de sua própria criadora.
Por Vivian Matias
Arte é técnica, estudo, mas não só.
É história, é memória individual e coletiva.
É afeto em fluxos, em trânsitos: deixar-se afetar e afetar-se de modo inevitável. Proponho, então, na obra 'EXISTÊNCIA, AMEAÇA E RESISTÊNCIA - O Gato Maracajá' uma síntese de memórias e afetos da infância no sertão central do Ceará, onde nasci e cresci.
Lembro um dia de ter visto, no meio da caatinga, um gato-do-mato, ou gato maracajá, como lá denominava-se o Leopardus tigrinus.
Pelos olhos de uma menina, parecia-me uma "mini-onça" encantadora e feroz.
Então, a figura do gato maracajá foi personagem que habitou minhas expectativas e curiosidades sempre que eu pude entrar mata adentro.
Imaginava que na noite estes felinos reluziam como neon e estavam à espreita de quem ousasse invadir seus territórios. Isso me gerava encantamento. Era um ser encantado.
O gato maracajá, comumente visto nos idos dos anos 1980 e 1990 nos sertões, hoje é uma espécie listada como vulnerável à extinção, constando na lista vermelha da International Union for Conservation of Nature.
Acessando memórias, afetos e o engajamento político com as lutas anti-especistas, a obra que apresento na exposição 'Entre Sertão e Versos' busca retratar o movimento concreto, mas também metafórico e encantado da EXISTÊNCIA, AMEAÇA e RESISTÊNCIA deste ser que hoje é presença rara nas andanças pelos sertões.
Para a sua materialização, a sequência imagética EXISTÊNCIA, AMEAÇA E RESISTÊNCIA tem como alicerce materiais abundantes do semiárido nordestino: o algodão e os óxidos de ferro.
Sobre papel de algodão de gramatura 600g/m2, a primeira camada é executada com geotintas provenientes do sertão pernambucano, cujos pigmentos à base de óxidos de ferro já eram utilizados há mais de 8 mil anos em pinturas rupestres.
Caracterizando-se como técnica mista, também compõem as várias camadas de formas e cores a aquarela de origem vegetal, o nanquim e lápis de cor à base de óleo resistente à luz.
No trabalho EXISTÊNCIA busco retratar, de modo mais realista, o gato-do-mato.
Como AMEAÇA, construo um movimento de passagem entre a existência e desaparecimento desta espécie no sertão. Na pintura, com pinceladas secas e tintas escorridas com o efeito da gravidade, interpreto algo como uma "longa exposição fotográfica do processo de ameaça de extinção".
Já o felino reluzente em cores vivas quase neons é a tentativa de expressar o meu encantamento de menina com este ser. Também é um modo de imaginar que a RESISTÊNCIA ao processo de extinção requer de nós, animais humanos, ouvir, ver, nos afetarmos e agir descentrando-nos de uma cultura antropocêntrica e especista.
Relevante situar estas pinturas como parte de uma série anti-especista que tenho trabalhado desde o ano 2021 - a Série Pessoas. Composta por retratos de animais não humanos, a série busca reconhecê-los como seres relevantes, com suas particularidades e singularidades - e, até, por meio da pintura, com histórias e personalidades pluriversas incompreendidas por nós, animais humanos.
Assim como as indissociáveis opressões de gênero, raça e classe, o especismo é também estrutural em nossa sociabilidade e diz respeito à opressão entre espécies, um modo de opressão que compõe a estrutura das sociedades capitalistas contemporâneas onde não apenas certas existências (humanas e não-humanas) tornam-se mercadorias, mas, indo além, "deixam-se viver e fazem-se morrer".
Para nós de Abya Yala, tais opressões possuem uma origem histórica comum: a modernidade ocidental, na qual por meio de uma racionalidade dicotômica e hierarquizante (no seio de uma visão de mundo euro-antropocêntrica), construiu-se como modelo de humano o homem, branco, cisheterossexual, burguês e produto do marco civilizatório europeu. Este padrão nos foi empurrado goela abaixo pelo colonialismo europeu em nossos territórios por meio de um processo ainda em curso de genocídio e epistemicídio dos povos amefricanos, processo este necessário para nos impor a ideia de que os considerados "humanos" estão numa posição hierarquicamente superior às demais existências.
Carregamos, então, o que a feminista descolonial María Lugones denomina "dicotomia central da modernidade colonial" - a dicotomia humano x não-humano.
Análoga e decorrente desta dicotomia central, nossa cultura ocidentalizada hierarquiza e separa "cultura, produto humano, sujeito" x "natureza, produto não-humano, objeto", sendo esta última compreendida como algo a ser dominado e explorado de acordo com os desejos e supostas necessidades daquilo que se convencionou como humanidade.
O pensamento moderno eurocêntrico capitalista e ocidentalizante é o alicerce legitimador da exploração, escravização e extermínio de outras espécies percebidas como parte desta mesma natureza passiva e sem dignidade.
Neste sentido, a obra que exponho pode ser significada como uma compreensão da arte enquanto importante forma de expressão da resistência anti-especista, já que na arte dialogamos não apenas com o suposto humano, mas com toda a existência, extrapolando e subvertendo uma racionalidade legitimadora das diversas opressões.
Tento dialogar, então, com as vozes silenciadas de outras espécies por meio do afeto, da imaginação e do reconhecimento de suas importâncias no mundo.
Para conhecer outros trabalhos de Vivian Matias, acessar @vivian.matias.artelibre
E fica o convite para a visita à exposição. Para acompanhar detalhes sobre horários e endereços, ver as notícias nas redes da Galeria 180Arts.