Sob o Céu Nordestino 1 e 2: release

Apresentação de duas obras fotográficas que participam da exposição coletiva Entre Sertão e Versos, da Galeria 180Arts em Recife

ADILSON A. S. JÚNIOR

Duas de nossas obras estão compondo a exposição coletiva Entre Sertão e Versos, na Galeria 180Arts, que ocorre entre 18 de junho e 27 de julho de 2022. As fotografias recebem os títulos de Sob o Céu Nordestino 1 e 2. Esses registros foram feitos nos caminhos que levam ao Lajedo do Pai Mateus, em Cabaceiras, no Sertão da Paraíba, terras do Cariri paraibano. São capturas em longa exposição (30 seg.), realizadas durante uma noite de lua cheia na Semana Santa de 2022.

Banhada pela luz da lua cheia de abril, uma casa isolada, abandonada à margem da estrada de terra, com algumas portas e janelas entreabertas, que revelam o interior numa escuridão profunda. Circundada por mandacarus e outras plantas agrestes, uma cerca recortada de galhos. Um cupinzeiro crescendo no topo, junto com alguns cactos que brotaram no telhado. Parte de um rebanho de gado, criado desgarrado nos arredores, faz vigília escondido atrás da casa. Diz-se que já foi morada da gente sertaneja, depois tornada cenário para a produção cinematográfica que já se acumula às dezenas, e utiliza a paisagem de Cabaceiras como estúdio a céu aberto.

O Sertão na arte. De imediato, os tons de azul, verde e marrom-avermelhados profundos, o céu estrelado, a casa rústica, os cactos, a estrada de terra e a caatinga no entorno nos projetam diretamente para os símbolos, elementos, formas associadas secularmente ao Sertão nordestino. Mas o título da obra e o lugar retratado, pretendem projetar a reflexão do espectador para o tema de como as paisagens, símbolos e personagens do Sertão são historicamente apropriados, refuncionalizados e resignificados pela criação artística, seja literária, poética, plástica, musical, coreográfica, audiovisual. O título dado à obra é o mesmo de um filme dirigido por Walfredo Rodriguez nos anos 1920 (Sob o Céu Nordestino, 1929) retratando o Nordeste, algumas de suas cidades, atividades econômicas, trabalhadores e costumes; uma película ainda em preto e branco, do cinema mudo, afamado na época do seu lançamento; depois vieram tantas outras realizações audiovisuais, utilizando os cenários da hoje conhecida como Roliúde Nordestina, a cidade de Cabaceiras.

Apelo sobrenatural, místico ou bucólico da paisagem noturna do Sertão. A captura da imagem foi realizada na escuridão dos caminhos que levam ao Lajedo do Pai Mateus. No instante do registro, a luz forte da lua cheia preenchia a paisagem, mas o contraste entre a claridade tênue que se refletia em elementos do cenário e a escuridão de toda uma região protegida da poluição luminosa dos grandes centros urbanos permitia, de certo modo, antever toda a atmosfera que, desde longa data, serve de base para o imaginário e os causos das lendas, assombrações, dos personagens messiânicos e do misticismo impregnado no Sertão e suas memórias. Lendas e superstições que, com recorrência, utilizam como gatilho para as aparições, metamorfoses ou ingredientes a mesma lua cheia cuja luz se refletia nos elementos capturados nas imagens. Uma dessas lendas diz respeito, justamente, àquela que batiza o próprio lajedo. Que fala sobre um ermitão curandeiro que, na metade do século XVII, se estabeleceu em uma das pedras arredondadas e ocas, dentre as dezenas então presentes na formação geológica, e passou a atender a população habitante no entorno. Chamado Pai Mateus, diz-se que realizava curas com orações e plantas medicinais em troca de comida, usando como morada a gruta de uma pedra com inscrições no teto e nas paredes.

A técnica de exposição e a metalinguagem. A abordagem do cenário em grande angular pretende proporcionar ao espectador uma aproximação e imersão no quadro. Como se estivesse perto o bastante para se projetar para dentro, mas numa circunstância de relativa pequenez diante de um grande assunto que aparece amplo e distorcido em face de quem o olha desde baixo. Seria possível dizer que as imagens acabam por transitar por um leque de linguagens ou ramos da fotografia: astrofotografia, fotografia de arquitetura e paisagem, fotografia documental... E a técnica de longa exposição remete também aos primeiros estágios do registro de imagens em uma base fotossensível, quando a tecnologia fotográfica estava ainda em seu alvorecer, exigindo longos tempos de captura para o registro das cenas retratadas. Algo que se sintoniza com a própria atmosfera dos assuntos das obras em tela, que nos colocam em face de elementos associados socialmente a um pretenso passado ou primitivismo.

O Sertão e os antepassados indígenas. Em vários pontos da região onde as fotografias Sob o Céu do Nordestino 1 e 2 foram concebidas, encontram-se, em interação com as raríssimas formações geológicas, as marcas da presença e da sociabilidade de ancestrais indígenas, materializada em pinturas e gravações rupestres, marcas de polimento e de habitações ou espaços cerimoniais, ligados à presença, datada de milhares de anos, dos cariris. Nas formações geológicas que serviram de morada e trabalho desses povos milenares ainda restam gravados registros da sua sensibilidade estética. Povos que protagonizaram significativas lutas contra a empresa colonizadora e que sofreram brutalmente a reação dos seus opressores europeus. E a fotografia acaba por se dirigir a um assunto como esse, que nos desperta para outros modos de habitar e se expressar, mais recentes, mas que a vida urbana moderna, e a dominação de classe correspondente, cria a sensação de dizer respeito a épocas longínquas e ancestrais, ainda existentes, mas em pretenso desaparecimento: a casa, encravada entre cactos e mandacarus, erguida com materiais rústicos e locais, desligada das redes de comunicação e eletricidade.

Para mais reflexões sobre os trabalhadores e oprimidos do Nordeste, seus dramas e lutas, indicamos nosso ensaio sobre a poesia de João Cabral. Clique no título para acesso gratuito ao e-book: COISAS DE NÃO: trabalhadores na obra de João Cabral de Melo Neto

E fica o convite para a visita à exposição. Para acompanhar detalhes sobre horários e endereços, ver as notícias nas redes da Galeria 180Arts.